A canção brasileira talvez seja o gênero artístico mais difundido entre nós, espécie de cosmorama em que os tipos humanos, os hábitos sociais, a fala anárquica do povo e, como não poderia deixar de ser, as nossas incongruências se vêem representadas. Por isso, não temos dúvida de que discorrer sobre o que o brasileiro assobia ou cantarola nos aproxima muito do que somos e do que desejamos ser. É senda que vai do lúdico ao político e também ao ético... poético, enfim.Sabemos que a canção não pode ser música pura, nem pura poesia, mas um híbrido que, de certa forma, remonta às nossas origens, quando as fronteiras entre as artes e gêneros ainda não haviam sido delimitadas.
O trabalho do compositor popular é conjugar letra e música; a obrigatoriedade de tal casamento, para muitos, pode significar um aprisionamento formal, porém, há aqueles que tanto nos aspectos harmônicos e melódicos quanto nos poéticos voam alto, embaralham as fronteiras entre alta e baixa cultura, entre popular e erudito e alcançam um plano estético verdadeiramente superior.
Ser compositor popular, no Brasil, não é nada fácil. Se levarmos em consideração a qualidade monumental de nossa tradição -e devemos levar- é um privilégio e, concomitantemente, uma responsabilidade, propor-se a criar qualquer coisa sob a sombra de Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Adoniran Barbosa, Noel Rosa, Tom Jobim... Bravos são aqueles que não temem a convivência com o cânone. Louvados sejam.
No entanto, é preciso cantar outros cantos; recriar a tradição, negá-la, assumi-la, antropofagizá-la. Felizmente, isto tem acontecido, a música popular brasileira pulsa vigorosa, alimenta-se, fortalece-se e segue viagem.A morte da canção, tão alardeada, desaconteceu. Nos últimos tempos temos visto surgir uma safra considerável de compositores extremamente talentosos, zelosos dos aspectos formais da canção, atentos à beleza melódica, às sutilezas harmônicas, às múltiplas variantes timbrísticas, ou seja, artistas que pensam a canção como campo fértil à invenção e picadeiro da aventura humana. O casamento entre melodia e texto viceja majestoso, modifica-se, traveste-se, e mantém-se firme, no tecnobrega, no pop tupi, no rap sambado, no samba rapeado, repensado e repisado pelos palcos do país. A canção brasileira assume, definitivamente, sua vocação mestiça.
Wilson Teixeira é um jovem cancioneiro brasileiro arquetípico, urbanóide-caipira, herdeiro dessa tradição de solfejar o cotidiano para driblar a brutalidade. Suas canções transitam entra a celebração da festa em estado puro, assumida no prazer de cantar por cantar e uma melancolia densa, temperada na saudade ibérica e no banzo africano.
Sua música, tem a sonoridade dos tempos imemoriais, que emana do corpo da viola, e, ao mesmo tempo, conjuga o presente inquieto da busca por um caminho próprio, corporificado nas melodias surpreendentes, nas harmonias, nos sopros e batuques – é curioso, mas muitas de suas letras fazem referência a alguém em trânsito perpétuo, na estrada, obsessivamente (que tanto pode ser um beatnik perseguindo a iluminação quanto um nômade guarani em busca da terra sem mal).
Quero com isso dizer que forma e conteúdo aqui se casam muito bem, materializando, em letra e música, essa opção estética pela construção de um caminho diverso, incógnito, imprevisível, utópico. Wilson Teixeira é um homem em trânsito frenético, “um tupi tangendo um alaúde”. De viola na mão, procura sua Pasárgada, cônscio de que aceitar as mesquinharias do cotidiano é covardia, daí o afã por construir esses castelos invisíveis em que o canto é ininterrupto, as flores de setembro são eternas e as mulheres são morenas.A água não pede licença para chover, portanto, chovemos, digo, cantamos, porque estamos vivos e haverá sempre cantilenas no vento, azinhavre nos bolsos, lágrimas no mar.
Enquanto o peito ritmar alguém sacolejará o corpo e, inexoravelmente, cantará. Da combustão de carne e espírito é que nasce o canto, matéria fóssil de natureza estelar, soma e sema, paulada e poema.
Salve, Wilson Teixeira, compositor brasileiro, meu amigo, meu parceiro.
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terça-feira, 4 de março de 2008
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